App’s para Covidus-19 que usam só Bluetooth são, realmente, confiáveis?
João Orvalho,
professor do Politécnico de Coimbra, Investigador do CISUC da Universidade de Coimbra
joaorvalho@gmail.com, http://www.joao-orvalho.pt/, 936969156
Há vários anos que atuamos em
situações relacionadas com a localização e rastreamento, em projetos com
tecnologias Bluetooth e outras (GPS, LoRa, etc) em espaços abertos, urbanos e
interiores (edifícios amplos, reduzidos, autocarros, Metro, centros comerciais,
etc), que mantém a operacionalidade, materializada em diversos e produtos e
serviços. Esta reflexão foi elaborada com base em trabalhos efetuados no
contexto do projeto BlueEyes [1], Politécnico de Coimbra, e do relacionamento
com parceiros empresariais com é caso da empresa Italiana GiPStech [2], de cujo
blog saiu parte deste conteúdo, com quem tenho trabalhado num projeto piloto
numa estação de Metro em Portugal, e da empresa Streamline [3], de Coimbra.
Ora, as múltiplas opções (App’s)
a ser lançadas e patrocinadas por governos e outros, estão focados na
tecnologia Bluetooth, o que me deixa um pouco perplexo. Será um erro de perceção
minha ou faltam esclarecimentos?
Salvo melhores opiniões, a opção
apenas por sinais Bluetooth, não considerando outras opções técnicas
(algoritmos), como é o caso da fusão de multisensores, é um risco que afetará a
confiabilidade de uma App para detetar (ou não) os contatos de grande
proximidade entre pessoas diferentes. Consequentemente, os dados registados
podem ser afetados por um grande número de falsos positivos ou falsos
negativos, com repercussões na validade dos avisos-alarmes gerados após a deteção,
subsequente, de um contágio: pode-se estar a enviar avisos aos utilizadores sem
risco (detetados incorretamente) e, por outro lado, não serem enviados aos utilizadores
de risco, pois, o último, pode não ter sido totalmente detetado pelo
aplicativo.
Sem dúvida, que o meio mais amplamente
disponível para ajudar nesta emergência pandémica passa pelo smartphone que cada um de nós “veste” todos os
dias. Na China, por exemplo, o uso de smartphones
na população entre 15 e os 65 anos de idade é quase 100% [4],. No entanto, se
uma App é uma forma barata e rápida de fazê-lo, provavelmente não se pode dizer
o mesmo sobre a eficácia obtida pelo uso de tecnologias, normalmente
disponíveis num smartphone comercial, que, entre outras coisas, foram reduzidas,
por várias razões, à possibilidade de usar apenas o sinal Bluetooth.
Se
o foco das discussões está colocado na privacidade dos dados, aqui, neste
texto, o eixo é colocado nas vertentes técnicas, relacionados com:
i - a possibilidade de estimar uma
distância a partir das medições da potência do sinal Bluetooth, emitido por
dois ou mais smartphones;
ii - a possibilidade de manter a App
ativa em segundo plano, tornando-a disponível (funcional) em todos os tipos e
modelos de equipamentos, a fim de garantir direitos de acesso
"iguais" a qualquer pessoa com um smartphone.
Analisemos pontos A e B.
A - Estimativa da
distância a partir da mera medição da potência de um sinal de radiofrequência
Todos os smartphones estão
equipados com um rádio Bluetooth, mais tradicionalmente usado para propósitos
muito diferentes daqueles para os quais está agora a ser usado: o Bluetooth foi
usado para conectar os headphones, transferir alguns arquivos (pequenos) e
conectar mãos-livres do carro, etc. Contudo, hoje, usamos o sinal Bluetooth, ou
melhor, a medida de sua intensidade, para calcular a distância entre dispositivos
(smartphones, Beacons, etc) em imensos sistemas de navegação (ex: cidadãos
cegos), localização, posicionamento, rastreamento, etc.
No caso de medição da potencia do
seu sinal, entre smartphones, o princípio é muito simples: cada smartphone pode
emitir um sinal e receber os sinais emitidos pelos outros smartphones que estão
nas imediações, se um sinal é recebido com intensidade "alta", o
smartphone emissor é está "Próximo" (ou melhor: provavelmente está
próximo) do outro, o recetor e vice-versa.
Segundo as leis que regulam o
eletromagnetismo, existe um relacionamento que permite converter a medição da
intensidade de um sinal de rádio à distância, segundo uma formula simples e
muito “popular” [5]:
Distancia = 10 ^ ((Ro
– RSSI)/(10 * N))
Onde Ro é o valor da intensidade
do sinal medido quando exatamente a 1 metro de distância (parâmetro constante
geralmente conhecido ou medido a priori), o RSSI (Received Signal Strength
Indicator) é a medição do sinal recebido e N é um coeficiente em relação ao
ambiente normalmente variável entre 2 e 4.
Ou seja, parece simples o calculo,
mesmo com alta precisão, da distância entre dois smartphones a partir da
simples medição do RSSI, ie do sinal que um smartphone recebe do outro.
Infelizmente, não é bem assim. O consórcio que estandardização do Bluetooth – Bluetooth
SIG [6], reporta vários fatores que impedem a estimativa precisa da distância em
tempo real usando, apenas, o sinal RSSI, como o único valor mensurável em
smartphones Android e iOS.
De forma resumida, isso significa
que pelo menos dois smartphones, especialmente de marca e modelo diferentes,
posicionados a uma distância predefinida que permanece constante durante a
medição, por exemplo, 2 metros, NÃO recebem um sinal, um do outro, com o mesmo
valor RSSI. Ou seja, o RSSI medido pelos dois smartphones será diferente e,
consequentemente, cada smartphone poderá estimar uma distância que será
diferente entre si, mesmo que os smartphones permaneçam estacionários.
Mais, considerando esse tipo
particular de ligação que liga o RSSI e a distância, as pequenas variações na
medição do RSSI podem causar erros significativos na estimativa da distância.
Atende-se à seguinte situação real:
- Se
colocarmos dois smartphones, A e B, a uma distância de 2 metros. A essa
distância, de acordo com a fórmula referida e usando coeficientes típicos, como
R0 = -65dBm e N = 2, teoricamente o sinal que cada smartphone deve receber para
um enquadramento de 2 metros de distância, deverá ser igual a -71,05 dBm ;
- Se usarmos a
App BleTestContact da GIPStech [7], desenvolvida para testar esta situação,
verificamos que as medições do smartphone A e/ou smartphone B diferirem, sem
querer exagerar, mesmo em 6dBm, que a uma distância de 2 metros significa quase
1 metro de erro (se medirmos 6dBm menos) e 2 metros de erro (se medirmos mais de
6dBm).
Consequentemente, a distância
real de 2 metros pode ser erroneamente estimada em 1 metro ou, pior ainda, em 4
metros: o dobro da distância real. Acrescente-se, a isso, que, se os modelos de
smartphone forem diferentes, a estimativa, também, será diferente para o smartphone
A e para o smartphone B. Não se considerou, no exemplo descrito, que em
cenários reais os smarthhones encontrar-se-ão em condições muito diferentes, nem
sempre colocados em cima de uma mesa a uma distância fixa e sem objetos no meio
que dificultem a propagação do sinal de rádio.
De fato, se "complicarmos”
um pouco o cenário, trazendo a simulação de volta a um caso real, basicamente,
os dois smartphones quase nunca ficarão parados. E, pior ainda, eles quase
nunca estarão "visíveis" ou, naturalmente, estarão colocados num
bolso, numa carteira, etc.
Como a o sinal RF do Bluetooth - radiação
eletromagnética - é substancialmente, quase totalmente, absorvida por muitos
tipos de obstáculos, principalmente pelo corpo humano, sendo este último muito
denso com a água, a “coisa” complica-se.
A App BleTestContact da GiPStech,
para Android, permite medir da distancia, segundo a formula anteriormente descrita.
O código fonte está disponível, para não haver dúvidas (algoritmo) e deixar
transparente que a App não guarda, nem envia dados pela Internet, mas apenas se
limita a emitir e receber sinais Bluetooth.
Instale-se a App em dois ou mais smartphones
e execute-se alguns testes, tipo DIY (faça você mesmo, em português).
B- Mantenha a App
sempre ativa no smartphone
Outro problema, que, embora ainda
não esteja adequadamente destacado, é, típico destes situações, crítico, pois,
é conhecida a "não adesão" dos vários fabricantes de smartphones às
especificações originais impostas, por exemplo, pela Google ao Android.
De fato, para que ocorra a troca
de sinais Bluetooth descritos na seção anterior, tem uma App de estar sempre em
execução, no smartphone responsável por executar a tarefa de detetar o
"contato" com outra pessoa que, por definição, tal pode acontecer a
qualquer momento.
Tal situação é, substancialmente,
critica, principalmente, pelo elevado consumo de energia da bateria. Os
sistemas operativos “desligam” este tipo de App, não sendo, então, possível
garantir que o aplicativo permaneça ativo para executar a tarefa para a qual o
próprio projetado: detetar contato entre pessoas diferentes. Se não for o
sistema operativo, será o utilizador a desligar a App quando verificar o nível
de energia na bateria a decrescer acentuadamente.
Remeto para o site Don't kill my
app! [8], para melhor se analisar este problema. Este interessantíssimo projeto,
de código aberto, sobre este assunto, tem um nome é autoexplicativo e sugestivo:
"Não mate a minha App!".
Assim, resumindo, perante este angulo, como será possível garantir
a confiabilidade de um sistema medidor de proximidades comprometedoras ?
Haja esclarecimentos técnicos.
Referencias:
[1] Projecto BlueEyes - https://www.esec.pt/investigar-transferir/investigacao/projeto-blueeyes
;
[2] GIPStech - http://www.gipstech.com/2020/04/21/bluetooth_only_app_can_help_for_containing_codiv19_spread/
;
[3] Streamline – https://www.streamline.pt ;
[4] “Population Outflow from Wuhan Determines the Spread and
Distribution of the COVID-19 Epidemic in China”, preprint, under review, Jayson
S. Jia Faculty of Business and Economics, The University of Hong Kong; Xin Lu, College
of Systems Engineering, National University of Defense Technology; Yun Yuan, School
of Economics and Management, Southwest Jiaotong University; Ge Xu, School of
Management, Hunan University of Technology and Business; Jianmin Jia, Shenzhen
Finance Institute, School of Management and Economics, The Chinese University
of Hong Kong; Shenzhen Institute of Artificial Intelligence and Robotics for
Society jmjia@cuhk.edu.cnCorresponding Author; Nicholas A. Christakis,Yale
Institute for Network Science, Yale University. Nature Research - https://www.researchsquare.com/browse?journal=nature-research
;
[5] “Evaluation of the Reliability of RSSI for Indoor
Localization”, Qian Dong and Waltenegus Dargie Chair of Computer Networks,
Faculty of Computer Science, Technical University of Dresden, Germany, 01062
Email: qian.dong, waltenegus.dargie@tu-dresden.de; 978-1-4673-1291-2/12/$31.00
c 2012 IEEE;
[6] Bluetooth SIG - https://www.bluetooth.com/blog/proximity-and-rssi/
;
[8] Don't kill my app! - https://dontkillmyapp.com/ .